A nova era do jornalismo identificado:
A evolução do jornalismo esportivo reflete um dilema central: como equilibrar a paixão pelo futebol com a responsabilidade de informar de forma ética e imparcial?
No cenário digital, onde a velocidade das opiniões e a intensidade dos debates nas redes sociais moldam o consumo de informações, o trabalho do jornalista esportivo enfrenta grandes desafios. As plataformas digitais não apenas aumentaram a interação entre profissionais e público, mas também deram espaço a um fenômeno, que antes não era tão comum: a declaração de preferências por times de futebol. Essa exposição, que há poucos anos seria inconcebível nos grandes veículos de comunicação, hoje coloca em questão os limites da imparcialidade perante a atuação dentro do jornalismo.
Em meio a essas mudanças, o jornalismo esportivo se reinventa a cada dia. O repórter e o comentarista precisam, mais do que nunca, alinhar credibilidade e autenticidade, andando por uma linha tênue que separa a análise técnica da manifestação emocional muito comum pelo torcedor. Essa dinâmica transforma o ato de informar, exigindo ainda mais profissionalismo no processo de construção do conteúdo jornalístico, especialmente em um ambiente tão emocional como o futebol.
No entanto, a declaração da paixão dos profissionais da comunicação por seus times do coração, também redefine a conexão com o público. Ela oferece transparência e humaniza estes profissionais, mas ao mesmo tempo, vem acompanhada de desafios, como a habilidade de manter o compromisso com uma narrativa justa e equilibrada.
Imparcialidade e confiança do público:
A imparcialidade é um dos pilares fundamentais do jornalismo, e no segmento esportivo, desempenha um papel decisivo na construção da confiança do público. Com base em relatar os fatos de maneira neutra, sem permitir que preferências pessoais ou clubísticas interfiram na narrativa. Essa abordagem é essencial para que os leitores, ouvintes e espectadores percebam o conteúdo como confiável e livre de alguma influência pessoal.
O jornalista podendo ser identificado como torcedor em sua área de atuação, mantém a principal função da profissão: informar com precisão e responsabilidade. Como aponta o jornalista Cassios: “Vejo que nesse quesito de ética, a identificação ou não deve interferir, até pelo fato de que ele segue sendo jornalista e tendo o dever de repassar a informação confiável, sem produzir barcos. Até que entenda fica mais fácil para criticar e elogiar quando necessário, pois não será tachado de 'torcedor do outro lado'. Porém, vale enfatizar que a responsabilidade é extremamente necessária para seguir os princípios da profissão.”, conta.
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Cassios Schaab – foto divulgação: Instagram.com/@cassiosdiogo
Além da credibilidade, a imparcialidade oferece a vantagem de um alcance mais amplo de público. Uma postura neutra permite dialogar com um público diverso, independente das preferências por time A, B ou C. Contudo, em um ambiente tão emocional quanto o futebol, a opção de se manter isento nem sempre é uma tarefa fácil. A pressão por parte do público apaixonado pode ser muito intensa. "A pressão é constante", comenta Maurício Souza, repórter da Rádio Grenal: "Os torcedores esperam que você expresse uma torcida ou uma opinião um pouco mais acalorada, mas com certeza, o desafio está em equilibrar a isenção com um conteúdo que engaje as pessoas que acompanham o esporte" afirma.
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Mauricio Souza – foto divulgação: Instagram/@omauriciosouzaa
Apesar dos benefícios claros, a imparcialidade pode ser percebida como "fria" por alguns públicos, especialmente em um cenário onde o jornalismo identificado ganha força. Porém, como reforçam Schaab e Souza, a confiança do público não se baseia apenas na imparcialidade ou na identificação com um clube, mas na capacidade do jornalista de demonstrar compromisso com a verdade, a precisão e o respeito ao leitor. O desafio, portanto, é equilibrar autenticidade e ética para entregar conteúdos informativos de qualidade.
No contraponto, o jornalismo identificado pode gerar um vínculo emocional mais forte com o público, aumentando o engajamento nos conteúdos produzidos por estes profissionais. A autenticidade que vem acompanhada por estes jornalistas é vista como um diferencial, já que, para muitos espectadores, a paixão declarada pode ser mais atraente pela emoção transmitida.
Onde a emoção e a informação se encontram:
No universo do jornalismo esportivo, onde a paixão pelo futebol pulsa muito forte, atualmente existem muitos profissionais que conseguem mesclar emoção de torcer pelo seu time do coração e promover a informação de forma autêntica e eficaz.
Essa abordagem ganha cada vez mais destaque no mercado da comunicação, onde temos a presença de jornalistas que não escondem sua identificação e ao mesmo tempo prezam pela qualidade e precisão de suas análises e produções jornalísticas. Shamchai Oliveira, jornalista e torcedora assumida, reflete sobre o desafio de equilibrar essas duas forças: “Durante uma transmissão de um jogo importante, é difícil controlar a emoção. Meu primeiro Gre-Nal no estádio foi inesquecível; chorei no gol, mas, após me recompor, consegui trazer uma análise precisa sobre o momento. Isso mostra que é possível sentir e informar ao mesmo tempo”, afirma a profissional.
Essa conexão emocional, no entanto, não diminui a importância da credibilidade. “Manter a ética e a veracidade é essencial, mesmo quando a identificação está presente”, destaca Shamchai. Essa reflexão é complementada pelo estudante de jornalismo Igor Serpa, que já atua como repórter identificado. Para ele, a escolha entre ser identificado ou manter-se isento está profundamente ligada aos objetivos pessoais de cada profissional. “Assumir publicamente o time do coração é algo que abre e fecha portas, da mesma forma como a opção de trabalhar de forma isenta. Tudo isso tem influência de acordo com os objetivos profissionais e da individualidade de cada pessoa”, ressalta Igor.
Um exemplo marcante da revolução da internet dentro do meio informativo é Fred Bruno, ex-integrante do Canal Desimpedidos e recém-contratado pelo Grupo Globo. Torcedor declarado do Palmeiras, Fred demonstra que é possível equilibrar paixão e profissionalismo.
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Fred Bruno - Foto Divulgação Internet: Wallace Teixeira
Em veículos de mídia como o SporTV ou a Bandeirantes, há uma maior facilidade de diferentes perspectivas, desde que o comentário esteja baseado em fatos. Outros exemplos incluem Pedro Espinosa e Alexandre Ernst, figuras conhecidas no programa Os Donos da Bola e em canais como Vozes do Gigante. Juntos, eles mostram que, onde emoção e informação se encontram, o jornalismo esportivo continua a evoluir e a cativar seu público.
Expectativa do público:
O público consumidor do jornalismo esportivo reflete a pluralidade de interesses e estilos de consumo que guiam esse mercado que cresce a cada dia. No caso de profissionais imparciais, quem acompanha espera que seja mantida essa linha, especialmente em grandes emissoras como RBS (afiliada da Rede Globo no RS), ou Bandeirantes. Entretanto, em espaços mais opinativos ou editoriais, como programas de debates, a expressão da torcida pode ser mais aceita, desde que fique claro que são opiniões pessoais e não uma manipulação dos fatos.
Muitos torcedores buscam informações que vão além do factual, mas a maneira como elas são entregues pode ser decisiva. Caroline Dias, torcedora do Internacional, valoriza o jornalismo isento: “Acompanho ambos os formatos, mas prefiro o isento. Ele traz informações mais lúcidas e sem ‘clubismo’. No entanto, é preciso cuidado com o identificado, que pode misturar razão e emoção, especialmente ao separar o pensamento pessoal do profissional.” Essa busca por uma cobertura clara e neutra ainda é um pilar importante, especialmente em momentos que demandam análises precisas e desprovidas de parcialidade.
Por outro lado, há um crescente interesse por conteúdos que proporcionem essa identificação com a paixão do torcedor e o sentimento de pertencimento, especialmente em plataformas digitais e programas de opinião. Para o gremista Ronaldo Totti, o jornalismo identificado cria um vínculo único com o torcedor, mas deve ser bem conduzido: “Esses jornalistas trazem informações dos bastidores, mas é essencial que tratem os fatos com seriedade, sem perder a imparcialidade ao analisar as questões.” Esse desejo de proximidade é também ecoado por Carlos Soares, torcedor colorado, que vê nos jornalistas identificados uma extensão do sentimento da torcida: “Prefiro quem declara abertamente seu amor pelo clube. Isso traz autenticidade e cria uma conexão maior com o torcedor, especialmente em momentos decisivos.”, conta.
Ainda assim, há aqueles que buscam equilíbrio entre as duas abordagens, como ressalta Vitor Gabriel, torcedor gremista e que consome ambos os conteúdos - de veículos imparciais e identificados. Ele destaca que a existência de rádios identificadas e isentas funciona, oferecendo para quem acompanha a perspectiva de várias vertentes informativas: “Rádios identificadas têm mais acesso às notícias dos clubes, mas o jornalismo isento oferece um contraponto necessário. O ideal é ter equilíbrio, com diferentes opiniões que mantenham o interesse e a qualidade da discussão.” Para ele, a diversidade de abordagens mantém o dinamismo e evita a repetição de argumentos, fundamental para cativar o público.
Essas opiniões mostram que o jornalismo esportivo deve navegar entre a credibilidade de uma cobertura isenta e a conexão emocional que o formato identificado proporciona, atendendo a diferentes perfis de consumidores que buscam não só informação, mas também uma experiência de pertencimento e emoção no consumo do conteúdo.
O crescimento exponencial de canais identificados:
Nos últimos anos, o mercado de canais identificados no YouTube e em outras plataformas digitais tem registrado um crescimento expressivo, atraindo torcedores apaixonados e remodelando o consumo de conteúdo jornalístico. Esse fenômeno reflete uma mudança significativa no comportamento do público, que agora prioriza conteúdo mais próximo de suas emoções e preferências. Como ressalta a jornalista colorada Shamchai Oliveira, repórter da Rádio Alma Vermelha no YouTube: “A internet revolucionou a vida de todas as pessoas e profissões, e no jornalismo não seria diferente! A liberdade de expressão permitiu a formação de grandes nichos. Profissionais talentosos, mas sem tantas oportunidades em grandes veículos, conseguem criar sua identidade com o público e conquistar espaço. No caso do jornalismo esportivo, o fácil acesso à internet possibilita que cada torcedor busque uma conexão com os profissionais que mais se identificam com seus sentimentos e opiniões.”, afirma a profissional.
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Shamchai Oliveira – foto divulgação: Instagram.com/@shamchaai
O jornalista e professor Carlos Guimarães reforça essa análise em entrevista ao portal Coletiva.net, mencionando Fabiano Baldasso como pioneiro no segmento: “Esse pessoal admitiu o time, pois encontraram uma fatia de mercado que perceberam estar se abrindo. Fabiano Baldasso rompeu paradigmas e, a partir dali muitos o seguiram.” Este movimento resultou em números que comprovam a força desse modelo. No estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, o canal de Fabiano Baldasso, identificado com o Internacional, alcança 464 mil inscritos, enquanto o canal de GZH, ligado à Rádio Gaúcha e referência na cobertura isenta, possui 548 mil inscritos – uma diferença menor do que se poderia imaginar, considerando o tamanho e a tradição do grupo RBS.
Além disso, a transmissão identificada tem tido mais audiência no mundo digital em relação à isenta, o que corrobora com a tese apresentada pelo professor Carlos. Como é possível perceber no gráfico abaixo:
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Gráfico 1 - Base de dados retirada dos Canais do jornalista Fabiano Baldasso, do grupo GZH e das rádios Vozes do Gigante e Rádio GreNal, durante a transmissão de Internacional x Cuiabá, pelo Campeonato Brasileiro 2024.
Os dados de audiência apontados no gráfico reforçam essa disparidade: em uma transmissão identificada do Internacional no canal de Fabiano Baldasso, com cerca de 6 horas de duração, foram registradas 332 mil visualizações, enquanto no canal de GZH da Rádio Gaúcha, uma transmissão semelhante teve 115 mil, com duração de 7 horas. A diferença não está apenas nos números, mas também nos comentários e no tipo de engajamento. Maurício Souza, repórter da Rádio Grenal, destaca o impacto emocional dessa identificação: “Cada toque, lance, defesa, ataque e, principalmente, o gol, são vividos de forma mais intensa quando narrados por um comunicador torcedor. Essa conexão é algo que um profissional imparcial não consegue transmitir. Esse contato direto fortalece a relação com o time.”, afirma o comunicador.
Além do público fiel ao clube, os canais identificados também atraem torcedores rivais em momentos de derrota, transformando reações e comentários em um espetáculo à parte, que gera engajamento e reforça a relevância desse nicho no cenário esportivo. Como fica nítido nas imagens abaixo:
Imagem 1 - retirada do canal do jornalista Fabiano Baldasso, na transmissão de Internacional x Cuiabá, pelo Campeonato Brasileiro 2024
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Imagem 2 - retirada do canal de GZH, na transmissão de Internacional x Cuiabá, pelo Campeonato Brasileiro 2024
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Enquanto grandes veículos buscam manter sua audiência, os canais identificados continuam expandindo sua influência, mostrando que a identificação é o diferencial que transforma a experiência do torcedor.
O mercado e o futuro do jornalismo esportivo
O jornalismo esportivo vive uma transformação acelerada impulsionada pela acessibilidade da internet e pela necessidade de adaptação ao novo comportamento do público. O jornalista Lucas de Freitas, traz dados importantes de sua pesquisa: “Cerca de 68,2% dos jornalistas identificados do estado do Rio Grande do Sul, trabalham em canais próprios. Em contrapartida, apenas 31,8% trabalham em veículos isentos da imprensa gaúcha”. Essa migração reflete não só a busca por independência financeira e editorial, mas também o apelo crescente por conteúdos mais próximos e pessoais, especialmente em plataformas como o YouTube. Maurício Souza, repórter da Rádio Grenal, acredita que, embora o jornalismo identificado tenha crescido consideravelmente, a transição para um cenário 100% identificado ainda é improvável, pois há barreiras culturais e de credibilidade que levam muitos profissionais a optarem pela imparcialidade. Contudo, ele aponta que o futuro reserva uma maior abertura para que jornalistas, principalmente os mais jovens, assumam suas preferências esportivas. A jornalista Shamchai Oliveira, da Rádio Alma Vermelha, destaca a vantagem da personalização e proximidade dos canais digitais, que permitem uma conexão mais profunda com o público e, muitas vezes, superam veículos tradicionais em alcance e engajamento.
Mesmo diante dessas mudanças, a essência do jornalismo esportivo deve continuar pautada pela ética e compromisso com a verdade, equilibrando paixão e profissionalismo. O futuro, ao que tudo indica, será uma mistura entre o tradicional e o inovador, com um mercado cada vez mais segmentado e atento às preferências do público.
Entre a linha do campo e a ética profissional:
O jornalismo esportivo vive uma transformação profunda, onde a paixão pelo esporte encontra o compromisso ético de seguir o ofício da profissão. Em meio ao gigante crescimento do jornalismo identificado, a reflexão que surge não é sobre a renúncia à imparcialidade, mas sobre como incorporá-la com responsabilidade. O cenário digital oferece aos jornalistas a liberdade de expressão e proximidade com o público, mas também exige maturidade na condução de narrativas que equilibrem emoção e veracidade. A consolidação desse modelo requer um esforço coletivo: os jornalistas devem continuar investindo na formação ética e técnica, enquanto consumidores precisam desenvolver um olhar crítico para valorizar conteúdos que priorizem a verdade. O futuro do jornalismo esportivo dependerá de sua capacidade em se adaptar a novas demandas sem perder sua essência, provando que é possível alinhar o fervor das arquibancadas à integridade das redações. Mais que um desafio, trata-se de uma oportunidade de ressignificar o papel do jornalista como um mediador confiável entre a emoção do campo e a ética profissional.
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